Fios são a metáfora da vida, ritos o que a torna sagrada. Assim expliquei para mim mesma, e para os outros, aquilo que experienciei ao bordar pela primeira vez. Embora já tenha refletido bastante sobre aquele dia, ainda tenho fresco na memória a sensação proporcionada por aquele momento. O vaivém das agulha e o entrelaçar dos fios me revelou algo inédito, mas ancestral, um momento de epifania que mudaria a minha forma de perceber o mundo, agora pelas mãos.
Talvez por isso encontrar o texto de Ana Maria Machado, O Tao da Teia, sobre textos e têxteis, tenha sido uma experiência de confirmação. Nele, a notável escritora revela, a partir de pontuais experiências pessoais, referências variadas sobre como o têxtil está literalmente na trama da vida.
Por exemplo, nas várias palavras que usamos para designar o texto e a escrita: a própria palavra texto (variante de tecido), trama, enredo, fio da meada, a expressão “quem conta um conto aumenta um ponto”, e até novelo e novela. O têxtil também é enredo de histórias universais, da Grécia antiga ao interior de Minas , na Europa medieval, com histórias como As Três Parcas e A Velha a Fiar, personagens como Penélope, Ariadne e seu novelo que ajuda a sair de labirintos, a bruxa da Bela Adormecida, entre tantas outras. Ana Maria Machado ainda nos conduz pelo fios que ajudam a tecer o feminino, o papel da mulher na escrita e no Brasil.
Um texto que me deu a certeza de que o que eu sentia não dizia respeito só a mim. É uma sabedoria universal, compartilhável, acessível e cheia de possibilidades de interpretação. Meu impulso era lógico, o de tecer os fios, mas antes disso, entendi que era preciso desfazer os nós, exibir os avessos e desfiar tecidos. Descobrir os rituais, as entre-telas e os materiais, para, só assim, construir novos mundos possíveis.
A Urdume surge assim, para revelar as estruturas. Para quem não sabe, urdume é o conjunto de fios que, posicionados longitudinalmente ao longo do tear, servem de base para a trama que se forma no perpassar dos fios transversais. E é sobre esses fios fundamentais, mas às vezes imperceptíveis, que queremos falar.
Nesta edição número zero, apresentamos os possíveis buracos a serem cerzidos na comunicação, os fios de expressão de Arthur Bispo do Rosário e os ritos que envolvem o fazer têxtil de quem está começando. Fiamos novelos da infância e, em tempo sombrio de cordas arrebentando, relembramos o papel do ativismo têxtil.
Textos sobre aquilo que não deveria ser escrito, mas vivido. Por isso, de antemão, já me desculpo pela audácia usando as palavras de Gilberto Gil em uma apresentação da música Iansã, na USP, 1973:
“Ela é o jeito que a gente intui a existência... da imanência e da transcendência.
Um dia eu ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo, se Deus quiser. Não vou ter mais necessidade de falar nada, de ficar pensando em termos descontrários, de tudo, para tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é.
Que eu não estou querendo ser dono da verdade, que eu não estou querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós, e mais alguém, o tempo, o verdadeiro alquimista, aquele que realmente transforma tudo."