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AMOR É VERBO

Conversamos com a mestre em Ciência da Religião Hanayrá Negreiros sobre ancestralidade, amor, passado, presente e futuro, na tentativa de atravessar estes dias que parecem infinitos (mas lembre-se: não são). Por Bárbara Poerner

Bordado feito por Andrea Orue da @primaverade83



Quando Estefania, editora e fundadora desta revista preciosa, que você tem em mãos, me convidou para escrever uma matéria, fiquei em dúvida sobre o que falar. Em meio ao caos, o que se fala? Pior: em meio ao luto, com três mil pessoas morrendo por dia e um genocida na gestão do país, o que se fala? Ademais, porquê se fala? Todas as palavras me pareciam um crime contra a humanidade. ‘’Como eu posso falar sobre isso, neste momento?’’. Substitua ‘’isso’’ por absolutamente qualquer coisa, mas principalmente por ‘’moda, vestuário, têxtil’’.


Assim como muitos, estou perdida. Tampouco me achei. Apenas consigo dar melhores nomes aos meus caminhos confusos, e assim trilhá-los com menos calos nos pés. Por enquanto. Clamei por referências, inspirações, conversas que me despertassem. Mas, às vezes, não há jeito e temos que nos contentar com a insuficiência do não poder, não saber, não conseguir. E tudo bem.


Porém, aos 45 do segundo tempo, tive uma resposta. Ela veio quando fui arrebatada pela deusa bell hooks a partir de suas palavras em Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas. De imediato me lembrei de quem perdeu seu amor, de quem está impossibilitado de amar plenamente. Lembrei de mil e uma questões que não seriam contempladas. E eu entendo. Mas também passei a aceitar a insuficiência das palavras: elas não vão contemplar tudo. Este texto jamais daria (nunca se propôs) conta de tudo o que vivemos. É impossível e sem precedentes.

Neste momento, no meio do luto infame de gente que morre de Covid-19 ou morre de Brasil, o que nos acompanha todo dia, senão o desamor? Por isso, quis puxar o fio da meada da vida, falando de amor. Como um acalanto, não como um escape. Como uma lembrança de que vale a pena lutar pela vida porque é bom amar. Aqui, faço uma tentativa sincera de reportar o mundo em movimento, com todas as suas contradições e dificuldades. É uma aposta, não necessariamente um acerto. Mas espero que, em alguma medida, lhe faça sentido e te lembre de amar.


Se você não conhece bell, não faz ideia do que está perdendo. Poderia escrever que ela é uma escritora, professora, ativista, mulher, negra… mas bell simplesmente é - para além de adjetivos e definições. O livro Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas faz parte da Trilogia do Amor, que engloba Salvação: pessoas negras e amor, e Comunhão: a busca feminina pelo amor. Lançados em 2000, 2001 e 2002, respectivamente, nos Estados Unidos, o primeiro foi traduzido e disponibilizado no Brasil pela Editora Elefante, em 2021.

No livro, que é base para esta matéria, bell discorre sobre amor como ação, e não como sentimento - como estamos acostumados a associá-lo. Ela aborda as manifestações do amor em diferentes contextos: do divino ao próprio, como ato revolucionário, como remo na travessia da dor. Nas páginas, bell empresta a definição do psiquiatra M. Scott Peck para definir o amor como ‘’a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa. O amor é o que o amor faz. Amar é um ato de vontade - isto é, tanto uma intenção como uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar’’. Durante a opacidade da dor, espero que o amor seja uma luz para nos lembrar de tudo que ainda podemos escolher. E que escolhamos sempre o justo e o humano, afinal, nas palavras da autora, ‘’não pode haver amor sem justiça.’’


Já que bell também diz que o amor não existe sem a verdade, serei sincera: a primeira entrevista que fiz com Hanayrá Negreiros (com quem dialogo na sequência) foi, estritamente, sobre ancestralidade. Depois, mudando os rumos, voltamos a conversar sobre o amor. E, nesse enlace, percebi que ambas as pautas caminham lado a lado. O amor é retomada e ao mesmo tempo é futuro (inclusive, a moda é igual). Silvane Silva, pesquisadora e professora, explica no prefácio da obra em questão: ‘’Ao propor que as transformações desejadas para a sociedade ocorram por meio da prática do amor, bell hooks nos afasta dos paradigmas eurocêntricos e coloniais que construíram a sociedade ocidental, baseada na exploração, injustiça, racismo e sexismo, e (re)direciona nosso pensamento e a nossa prática rumo à ancestralidade.’’

Por fim, abaixo você confere a conversa com Hanayrá, tão amorosa quanto competente no seu trabalho enquanto professora e pesquisadora de negras maneiras de vestir. Falamos sobre ancestralidade, sobre o lugar das pessoas negras na construção desse passado-presente-futuro do têxtil e da moda, e da necessidade em olhar para trás para poder caminhar para frente. No fundo, foi uma conversa profunda sobre o amor: pela moda, pelas pessoas, pela história. Nestes tempos desamorosos, não hesite em amar. Nestes dias que parecem não ter fim, não perca de vista o amor. Se agarre nele e em tudo que te conserva viva a memória amorosa.



Bárbara: Hana, primeiro gostaria de saber como você vê e experiencia o amor?

Hanayrá Negreiros: Acho que tempos difíceis merecem amor, mais lugares pra gente amar. Acho linda essa ideia de pensar o amor como travessia para atravessar esse momento difícil. Acho que também podemos pensar o amor como um direito, principalmente para nós, mulheres negras. O amor como um direito nosso e um afeto. Uma possibilidade para a gente passar pelas tormentas.



Bárbara: E como você, enquanto mulher negra, construiu sua história? Pode contar mais sobre sua trajetória? Sei que você é uma pessoa nostálgica...

Hanayrá: A história do negro e da mulher negra no Brasil é muito pautada por apagamentos, e a minha se enquadra nisso. Minha avó materna foi costureira de profissão, e deixou sua máquina de costura; minha mãe foi muito responsável por guardar essa máquina enquanto um objeto. Faltam umas partes, mas ela está lá. Eu cresci com essa maquina e, às vezes, brincava com ela, pensava o que poderia ter saído dali, o que minha avó poderia ter costurado. Tive a sorte de crescer numa casa com pai e mãe que entendiam essa paixão. Decidi, então, fazer faculdade de moda. Acho interessante pensar, hoje em dia, que durante minha graduação fui podada. A faculdade tem que ser esse espaço de conhecimento, e infelizmente na minha experiência isso não aconteceu, especialmente falando desse ambiente da moda. Sei que acontece com outros cursos, já que é um espaço que nos estranha. Quis desistir, mas tenho uma mãe muito porreta que não deixou. Tenho um histórico de mulheres negras nordestinas que entraram na faculdade antes de mim, e se estou aqui hoje, é porque as mulheres mais velhas [da minha família] me ajudaram a chegar até aqui. Isso me faz pensar nos lugares que as mulheres ocupam na sociedade. Essa minha caminhada, tanto o estudo ou profissional, é totalmente costurada pelas mulheres da minha família. Sou essa pessoa, metade paulista e metade maranhense, apaixonada por moda desde criança, e apaixonada por coisas antigas desde criança.



Na fotos acima, a família de Hanayrá reunida na casa de seu bisávo, Zeferino Negreiros (ao centro) na década 1950. Na foto da esquerda, sua avó Thereza (filha de Zeferino), costureira de profissão que deixou a máquina de costura como herança para ela e sua mãe. Na foto de baixo, Hanayra, sua mãe e sua tia Dulce na década de 1990. E a direita ao Hana fotografada na quarentena por seu marido, Felipe.




Bárbara: Você disse que sempre gostou de moda, mas o que é moda pra você?

Hanayrá: Hoje em dia prefiro pensar mais no vestir, do que na moda. Às vezes, a moda me remete a algo que cai no lugar do consumo. Óbvio que a gente compra e vende roupa, mas a moda que eu ensino está ligada ao viés histórico. Acho que ela é aquele fio que salta, para a gente puxar e entrar em vários outros campos de conhecimento. Por isso prefiro pensar o vestir: ele dá conta do universo subjetivo, das histórias que estão nas roupas, objetos. Na verdade, acho que a resposta acabou de aparecer: a moda é uma grande encruzilhada.


Bárbara: Como tudo vai mudando de sentido, ao longo da vida, não é? Por exemplo, sua própria jornada com a moda, na moda…

Hanayrá: A gente sempre pensa que vai trabalhar nas revistas, já pensa na Anne Hathaway em O Diabo Veste Prada. Mas, vamos descortinando e vendo as monstruosidades e questões complicadas que o mercado e o campo abarcam. Desde assédio moral e trabalho escravo, até esse lugar tênue que a moda tem de vender sonhos e possibilidades. Acredito que a gente, que trabalha com moda, tem a obrigação de tirá-la do campo da futilidade, de expor os problemas e pensar em outras possibilidades. A moda acaba sendo também um lugar transdisciplinar.


Bárbara: Como você analisa a presença das pessoas negras na moda, desde séculos passado até os dias atuais?

Hanayrá: A presença de pessoas negras na moda vem desde sempre como mão de obra. Isso mudou minha perspectiva, porque eu achei a história uma maneira de compreender o hoje. Durante minha pesquisa de mestrado, encontrei anúncios de jornal que falavam da compra e venda de mulheres escravizadas para trabalharem com ‘’modistas’’. Tem uma outra classe, de homens negros libertos, que são os alfaiataes. Sou neta de alfaiates. Teve a revolta dos alfaiates em 1798, na Bahia, que foi uma insurgência no contexto escravista. Além disso, se a gente for pra trás, na África, a prática dos ofícios manuais e bordados… tudo isso é nosso. Isso a gente sempre fez, mas pensando na condição dos negros brasileiros, sempre foi em uma condição de subalternidade. Quando mais a gente olha para trás, mais a gente desenterra essas histórias. E é difícil estudar a história da escravidão sendo negra, mas é uma missão que eu tenho de puxar essas histórias soterradas pelo racismo. Não dá pra pensar moda no Brasil sem pensar em pessoas negras e povos originários.


Bárbara: Também existe a questão do algodão, certo? Se não fossem as pessoas negras trabalhando nas plantações de algodão, que forneciam o insumo para as fábricas da Revolução Industrial na Inglaterra, que indústria teria se firmado?

Hanayrá: Boa parte das produções do Brasil colônia estavam no Maranhão, então é bem provável que meus ancestrais paternos tivessem trabalhado nas plantações de algodão. Pesquisando, vi que a gente produzia aqui, exportava e comprava o tecido da Inglaterra. Recentemente, eu ouvi o último discurso do Lula, e ele fala dessa relação de dependência e do Brasil ser entendido ainda como colônia. Eram as pessoas negras que trabalhavam nas plantações, mas elas não tinham direito às roupas e aos tecidos. Chega a ser paradoxal: as pessoas negras trabalhavam tanto produzindo coisas que não poderiam ter.


Bárbara: O que podemos resgatar desse passado e trazer pro hoje, pensando no futuro? Como podemos fazer essa travessia e como tem sido para você seguir nesse momento tão complicado?

Hanayrá: Minha experiência pessoal é mergulhar. Acho que a travessia tem que ser feita com um mergulho. Talvez a maior dificuldade seja saber a hora de levantar, tomar fôlego, e mergulhar de novo. Sobre o futuro, eu acredito que ele seja construído por meio da educação - se possível pública e de qualidade. Precisamos entender a educação como um lugar de transformação. Paulo Freire e bell hooks falaram isso há anos. Encontrei na possibilidade de ensinar moda uma forma de chamar as pessoas para lutarem junto comigo. Acredito também que a história da moda nos ajuda a visualizar o que houve e o que nos trouxe até essa situação. E digo isso pensando em uma educação de moda plural, que consiga romper as fronteiras eurocêntricas.


Bárbara: Você acha que o amor ajuda nessa travessia?

Hanayrá: Também acho que o amor é um mergulho. Nas minhas pesquisas ainda não fui para esse lado, mas quero. Em um vídeo da Simone Silva, que fez o prefácio deste livro da bell, ela falou dos livros. Eu tenho muito amor por eles, que também me ajudam muito nos meus mergulhos, estudos e resgates da história.


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