Palavras-chave: Artes manuais têxteis, São Bernardo, Graciliano Ramos, Teatro do Oprimido.
Resumo: Bordados é um espetáculo livremente inspirado em São Bernardo, de Graciliano Ramos. A escolha por uma ambientação cênica construída por corporeidades e fios justifica-se pela pesquisa desenvolvida por Elisa Santos no bojo do grupo de pesquisa e extensão Teatro Ludos da Universidade Federal de Goiás - UFG. Em sua construção destacam-se duas personagens, Paulo Honório e Madalena, materializados em sistema coringa, de Augusto Boal e interpretadas por diversos graduandos e pós-graduando integrantes do grupo.
A concepção e ambientação cênica do espetáculo Bordados vem sendo pensada desde o ano de 2021, início da pesquisa ARTE DE FIBRA: Tecendo experiências artístico-pedagógicas com fios. Esta possui a intenção de conectar os eixos de ensino, pesquisa e extensão ao desafio de estimular a produção e a fruição artística e artesanal têxtil na formação dos integrantes do grupo de pesquisa e extensão Teatro Ludos da Universidade Federal de Goiás - UFG.
Nesse contexto, o grupo, coordenado e dirigido pela professora doutora Clarice Costa, estabeleceu o acolhimento necessário para que eu pudesse atuar com meu conhecimento e interesse pelo universo têxtil ao último desafio do coletivo, que tratava-se da montagem de um espetáculo cênico livremente inspirado na obra literária São Bernardo de Graciliano Ramos. Foi quando surgiu o desejo de unir e compartilhar as referências teóricas, os processos criativos e as discussões que estavam sendo concomitantemente oportunizadas pelo Instituto Urdume, ao propósito de criar, para o projeto do grupo Ludos, uma ambientação cênica e adereços têxteis que fossem corporificados a partir de procedimentos e experimentações com fios.
Da motivação e vivência gerada em paralelo nesses dois ambientes de pesquisa foi despertada a ideia para a cenografia do espetáculo Bordados. Os encontros com o Instituto Urdume me alimentaram com referências teóricas e conduções práticas que foram simultaneamente compartilhadas com os graduandos e pós-graduandos na linguagem teatral, possibilitando a construção de elos entre o artístico, o intelectual e a docência.
Partimos da ideia e estética do bordado e do sistema coringa de Augusto Boal para pensar sobre as estruturas opressoras engendradas na nossa sociedade e também sobre a potência expressiva contida nas técnicas têxteis, capazes de acionar o corpo, mobilizar afetos e evocar memórias. Representativo da experiência doméstica e feminina, o bordado possui um potencial simbólico instigante para aprofundar, discutir e problematizar temas que atravessam as vivências dos participantes desse projeto, como sugere o método teatral criado por Augusto Boal.
Na trama de Graciliano Ramos, destacam-se duas personagens, Paulo Honório, o narrador que decide escrever a sua história por meio de uma visão capitalista e dominadora após a morte de sua esposa, Madalena, uma professora com ideais libertários e de justiça. O texto utiliza-se de artifícios ficcionais para tratar da temática da espoliação e reificação do sistema capitalista e nele pode ser observado um sistema onde vigoram o poder e a opressão. Trata-se de um enredo que tem como plano de fundo a situação dramática do Nordeste brasileiro, afetado pelas secas periódicas, sobretudo as das primeiras décadas do século XX, que ocasionaram o êxodo rural, a pobreza generalizada e as tentativas de sobrevivência dos sertanejos nordestinos.
Essa obra foi o guia para reflexões sobre a complexidade das estruturas sociais brasileiras que geraram uma sociedade brutalizada e foi o argumento ideal para tratar sobre temas urgentes, tais como a presença ostensiva da violência no sistema patriarcal, o controle, a regulação dos corpos, o silenciamento e o apagamento das mulheres, bem como a contínua reprodução de discursos antiquados sobre os papéis de gênero que ainda circulam nos discursos oficiais hegemônicos.
Alguns artistas plásticos foram selecionados como referência visual por contestarem as hierarquias estéticas e sociais através de seus procedimentos e processos criativos e também pela materialidade têxtil em suas obras, como auxílio didático, nessa etapa foi utilizado o conteúdo da exposição Transbordar: Transgressões do bordado na arte (SIMIONI, 2020). Exemplos desses nomes foram: Arthur Bispo do Rosário, Leonilson, Hélio Oiticica, Ana Teixeira, Francis Alÿs, as Arpilleras, Rosana Paulino, Rosana Palazyan, Leticia Parente, Beth Moysés, Edith Derdyk, Tatiana Blass, Adrianna eu, Karen Dolores, entre outros.
Para a concretização do espetáculo, além de encontros virtuais realizados semanalmente, foram realizadas duas residências artísticas em Goiânia, na Universidade Federal de Goiás - UFG. A primeira, aconteceu nos dias 13, 14 e 15 de julho e no seu decorrer foram realizadas experimentações de partituras corporais com fios. Essa atividade ministrada por Edmilson Braga esteve aliada a uma proposta pedagógica de composição de corpos cênicos, inspirada nos princípios das diretivas das artes marciais russa e no Systema, na antropologia teatral de Eugenio Barba, e na técnica de improvisação teatral Viewpoints.
A princípio, foi realizada a manipulação dos fios, que tratavam-se de novelos de lãs coloridas e barbantes. Foi ensinado, sem auxílio de agulhas, o ponto da correntinha do crochê e o tricô de braço ao grupo. Essas técnicas serviriam como procedimentos experimentais, conectando o corpo ao material e à intenção de despertar a performatividade nos participantes.
Segundo a percepção do experimentador e integrante do grupo Teatro Ludos, Pedro Galdino,
O trabalho prático de tricô de braço cria uma espécie de contracena entre os membros. Seu manuseio se faz poético com as linhas envoltas nos corpos cênicos. Os nós dos fios que nos unem e nos amarram, confundem-nos.
Desatar o nó é necessário, para que outros nós possam ser feitos; Explorar o caminhar das personagens de São Bernardo em meio aos fios, tricotando, tecendo. (GALDINO, 2021).
O participante relatou a dificuldade inicial em pegar os primeiros pontos e a percepção de que a linha de lã não havia produzido um efeito tão interessante quanto o do barbante em algodão cru. Após esse encontro em Goiânia foi dada continuidade, em Brasília, individual e coletivamente a uma nova fase de exploração de diversos tipos de fios, chegando à decisão pela utilização do fio de malha, um material mais resiliente, elástico e que não cria atrito com o corpo.
Nos dias 16, 17, 18 e 19 de novembro aconteceu a 2ª Residência Artística do grupo Teatro Ludos, momento em que por sugestão da diretora Clarice Costa o método de amarração e imobilização de corpos, de origem japonesa, conhecido como Shibari foi assimilado ao processo e escolhido como elemento central para o ato final do espetáculo. Performado em casal por Pedro Galdino (Paulo Honório) e Gabriela Silva (Madalena), essa prática que utiliza-se de cordas de juta, apresentada em cena criou uma visualidade erótica, violenta e desconfortável.
Também neste estágio do processo foram absorvidos como objetos cênicos duas grandes mandalas brancas de crochê, com fios de malha pendentes, essas quando manipuladas pelos intérpretes de maneira intuitiva e intensa, geram uma espécie de dança circular, desencadeando uma espécie de transe que finaliza-se com o descanso dos artefatos sugerindo uma lua cheia no canto do cenário.
Por fim, um enorme penetrável de fios de malha pendentes, nas cores vermelho, azul e amarelo, foi instalado na entrada do local de apresentação do espetáculo, o qual podia ser adentrado pelos espectadores no momento de sua chegada ao teatro.
A estreia do espetáculo Bordados se deu no dia 19 de novembro, às 17 horas no teatro La Cena, da Universidade Federal de Goiás - UFG e sua relevância encontra-se no seu posicionamento emancipatório construído através de uma proposta metodológica ativa e coletiva, que une o bordado, enquanto técnica ancestral, tradicional, mas também contemporânea e subversiva ao texto consagrado e atemporal, São Bernardo de Graciliano Ramos, para estudo e revisão das contradições, conflitos e oposições presentes na construção histórica do Brasil.
Por meio de uma montagem universitária, sem patrocínio ou custeio externo fez da precariedade do sistema de incentivo à cultura vigente um impulso de criatividade e resistência e utilizou-se da produção e reflexão sobre os fazeres e saberes manuais têxteis, a construção dramatúrgica e o ensino das artes um dispositivo para produção de narrativas de libertação.
1 Graduada em Artes Plásticas Licenciatura e Bacharelado pela Universidade de Brasília (2011), possui Especialização em Educação em Patrimônio Cultural e Artístico (2019). Atualmente é professora pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, cursa o mestrado PROF-ARTES pela Universidade de Brasília/UnB e integra o grupo de extensão Teatro Ludos, pela Universidade Federal de Goiás.
2 O Teatro Ludos iniciou suas atividades no 2º semestre do ano de 2016, como um Projeto de Pesquisa e Extensão e chegou a contar com 14 discentes. Ele tem por objetivo aprimorar a formação de professores para o ensino do teatro, de intérpretes teatrais, de pesquisadores nas artes da cena, assim como a realização de produções cênicas por meio de processos criativos.
Disponível em: https://www.emac.ufg.br/p/31181-teatro-ludos Acesso em: 1 de junho de 2021
Referências bibliográficas
BARBA, E.; SAVARESE, N. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução Luís Otávio Burnier et al. São Paulo: Hucitec; Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991 (livro escrito até fins de 1973 em Buenos Aires).
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 71ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SIMIONI, A. P. C., BRAZ, J. Transbordar: Transgressões do Bordado na Arte, Catálogo de exposição. SESC Pinheiros, 2020.
Elisa Santos possui graduação em Artes Plásticas, Licenciatura e Bacharelado pela Universidade de Brasília (2011) e Especialização em Educação em Patrimônio Cultural e Artístico (2019). Atualmente é professora pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e cursa o mestrado profissional em artes, PROF-ARTES, pela Universidade de Brasília.