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“Eu preciso dessas palavras - Escritas” - [URDUME edição número 0]


“OS ANJOS VÃO ARRIANDO

A FORMOSA FINA PLUMA

POR ONDE SAHI

O VERBO ESTRONDO.”

Arthur Bispo do Rosário


Estefania Lima



“Um dia eu simplesmente apareci”, era o que dizia Arthur Bispo do Rosário quando questionado sobre seu passado e nascimento. Sergipano, de Japaratuba, Bispo deixaria as pistas de sua origem em suas obras. O bordado, artesania pela qual sua região é conhecida, foi também o meio pelo qual registrou fragmentos de seu passado, misturados aos registros sobre todo mundo.

Interno da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, por mais de 50 anos, Arthur Bispo do Rosário deixou um arquivo de centenas de obras criadas com materiais que compunham a estrutura do hospital, segundo ele, a mando dos anjos que falavam em sua cabeça. Acreditando ser Jesus, Bispo tinha como missão a reconstrução do mundo, e fazia isso através de suas mãos. Mas não só isso. Registrava também através dos bordados trechos de sua trajetória até o status de santidade. Em um de seus estandartes narra o circuito místico que percorreu na noite de seu reconhecimento como o salvador pelo anjos, episódio que coincidiu com a sua entrada no hospício.

Antes de começar a produzir sua obra, Bispo passou por outros estágios dentro da Colônia. Antigo pugilista, foi “xerife” dentro da instituição, ajudando os guardas no controle dos internos. Foi o cargo que lhe rendeu uma cela especial, aquela que se tornaria o ateliê onde Bispo produziria sua arte.

Arte que, apesar de aclamada por críticos antes mesmo de sua morte, não era reconhecida por Bispo como tal. Embora tenha sido comparado a Marcel Duchamp, com seu trabalho classificado como arte pós-moderna, para ele, toda aquele exercício de criação era uma obrigação. Ordem das vozes que não o deixavam descansar. Era preciso fazer um fichário do mundo, a representação de tudo o que havia na Terra, em miniaturas e bordados, para apresentação a Deus no Dia do Juízo Final.

Para a chegada do último dia, Bispo bordou o Manto da Apresentação, nome atribuído por críticos de arte à mortalha sagrada bordada por ele durante quase toda a vida. No avesso da peça, em azul, constavam inscritos os nomes de seus eleitos para a salvação.

As palavras bordadas em azul, inclusive, foram uma de suas marcas, já que Bispo utilizava como linha o próprio uniforme de interno. Talvez ele não tivesse consciência, mas “ao desfazer o próprio uniforme, desconstruía um dos grandes símbolos do poder psiquiátrico e reutilizar a matéria-prima para construir seu universo paralelo, a sua utopia”, como afirma Luciana Hidalgo, autora do livro biográfico sobre Bispo, Senhor do Labirinto.

Além do manto, bordou também réplicas minúsculas do universo, registros de objetos variados, “assemblages” e pequenos objetos classificados pela crítica como O.R.F.A. (Objetos Recobertos por Fios Azuis).

Das centenas (talvez milhares) de frases e palavras bordadas por Bispo, a que ganhou maior destaque foi “EU PRECISO DESTAS PALAVRAS – ESCRITA.”, considerada sua frase-síntese.

Para Hidalgo, Bispo insistia no gesto de fiar-desfiar em busca de uma espécie de verdade de si em meio ao caos da rotina psiquiátrica. “Sua obra pode ser pensada como reconstrução de fragmentos de si mesmo, organização de visões, reminiscências, pensamentos.” Desconstruindo seu entorno manicomial (sua hierarquia, seus personagens, seus entulhos), Bispo encontrou um meio de sobrevivência à instituição.

Ao pegar objetos úteis e inúteis do hospício e organizá-los, conferindo novo sentido, ele demonstrava não se acuar pela psiquiatria. Através de sua arte, camuflou-se para sobreviver, ao mesmo tempo em que invertia poderes, desafiava rotinas e expunha os excessos do hospital psiquiátrico.

A glamourização desse processo seria tolice. Ao “receber sua missão”, Bispo foi selado com o rótulo de esquizofrênico-paranóico, passando a viver sobre as condições do mais terrível período manicomial no Brasil e, interrompendo ali talvez, suas chances de reconexão com o mundo. No entanto, é inegável que dentro de condições de insanidade, Bispo fez o que tinha de melhor, transformou sua dor em arte, expressando para si e para os outros as angústias de tão perturbado universo.

Arthur Bispo do Rosário morreu em 1989, aos 80, tendo sua obra já reconhecida e exposta em importantes museus . Em 2012, foi a principal atração da 30ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo.

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