Por de trás de milhares de visualizações de vídeos tutoriais de tricô e crochê, há muito mais do que uma boa professora: inspirada pelo movimento punk, a artesã Marie Castro vê no lema “do it yourself” o caminho para a liberdade
Por Estefania Lima - entrevista publicada na Revista Urdume #01 [fev/2019]
Desde a adolescência, quando já fazia parte de uma banda punk, Marie só encontrava sentido em trabalhos e atividades manuais alinhados com essa vertente do conceito de DIY [do it yourself ou faça você mesmo]. E foi naturalmente que a artesã assumiu tal proposta como postura de vida - aprendeu a tricotar e cozinhar aos oito anos de idade podendo, desde cedo, escolher o que vestir ou comer. Hoje, aos 29 anos, está à frente de um canal no YouTube com mais de 210 mil inscritos, no qual fala sobre moda têxtil [Marie ensina tricô e crochê em tutoriais pela internet no canal que leva seu nome] e coloca sua opinião sobre política, feminismo e consumismo.
Uma luta contra as imposições sociais
O movimento punk nasceu nos anos 70, em Nova York (EUA), e ganhou força na Inglaterra quando, em 6 de novembro de 1975, a banda Sex Pistols fez seu primeiro show na St. Martin’s
Art School, em Londres, ecoando seu estilo musical contestador para grupos de jovens insatisfeitos com o sistema. Naquele momento, na Inglaterra, muitos entendiam a anarquia como um caminho a ser seguido: o governo de esquerda do Partido Trabalhista vivia uma crise econômica em 1975 e, posteriormente, perderia as eleições para uma direita conservadora - Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, do Partido Conservador, chegou ao poder com uma apertada vitória nas
eleições de 1979.
O visual desleixado, as roupas rasgadas, os alfinetes pendurados, os piercings e os cabelos curtos, coloridos e arrepiados marcavam a ideologia punk e o que ela pregava: a autonomia, a autodisciplina e as regras pessoais em vez de imposições sociais. DIY e o movimento punk
Com base no conceito de que cada um tem direito a criar as próprias regras, nasce o lema punk: “se você não gosta do que existe, faça você mesmo” - o famoso do it yourself, frase que impulsionou não só um novo estilo de rock, mas toda a cultura em torno dele. Neste ímpeto de confrontar o sistema e a indústria cultural, os jovens começaram a criar suas próprias roupas, comprando em brechós e adaptando suas peças, montaram gravadoras independentes e fizeram publicações, aos poucos se libertando da lógica de consumo das grandes corporações. Em oposição ao período originário do conceito, quando havia escassez de produtos, na ascensão punk a ideia era justamente ir contra a imposição do consumo. "O punk foi um movimento de contracultura que promoveu o DIY pela abundância de ofertas, algo que se relaciona muito com os dias de hoje, com o movimento de consumo consciente", comenta Marie.
Para saber mais sobre a relação de Marie com o DIY, conversamos com a artesã sobre infância, fios, liberdade, autoconhecimento e posicionamento.
URDUME. Marie, como o tricô e o crochê entraram na sua vida?
Marie. Observando a minha família. Minha mãe e minha avó faziam tricô, crochê, bordado, e desde criança eu tenho sede por independência. Então, eu procurava aprender essas técnicas para ter liberdade de vestir ou comer o que eu quisesse. Comecei a tricotar com 7 anos, e o crochê chegou um pouco mais tarde, aos 13, mas fazia também muitas outras coisas. Adorava fazer coisas com sucata, por exemplo. Desde cedo eu entendi a independência que o trabalho manual poderia me dar.
URDUME. Em qual momento essa ferramenta de liberdade se tornou um ofício?
Marie. Aconteceu de forma muito orgânica. Comecei a costurar à máquina quando o acesso a peças diferentes era difícil. Eu não tinha acesso a tecidos, estampas diferentes, então comecei a customizar camisetas e depois ampliar isso para calças, casacos. Várias peças que fiz na minha adolescência, quando tinha minha banda punk, foram feitas de retalhos, reaproveitando coisas que eu tinha em casa. Com 15, 16 anos eu já fazia camisetas customizadas para vender no Mercado Mundo Mix [evento multicultural criado nos 90], já tentando empreender no ramo. Fazia parte do meu DNA punk. E apesar de ter trabalhado com outras coisas depois, sempre foram trabalhos relacionados com moda ou trabalhos manuais. Então, de alguma forma, handmade sempre esteve lá.
URDUME. Nas suas redes sociais você compartilha muitos dos insights que o fazer manual traz para você. Como tricotar ou fazer crochê contribuem para o seu processo de autoconhecimento?
Marie. Eu gosto de significar as coisas, o meu cotidiano, e desde a escola gosto muito de escrever. Acho que no crochê e no tricô isso também foi um processo natural porque uma técnica por si só não me basta, eu preciso contextualizá-la. Então, sempre correlaciono as dificuldades que tenho com os fios com coisas que estou vivendo na minha vida. O jeito que eu me comporto com a minha técnica é o jeito que eu me comporto no meu dia a dia. Todo processo de aprendizado reflete os processos da vida. No tricô e no crochê então... você só tem uma agulha, uma linha e a sua força de vontade. É como a vida na prática é, poucos recursos, pouca ajuda externa, em uma atividade solitária... não é essa a história da autonomia?
URDUME. Você consegue manter essa maneira de lidar com a técnica e com a vida mesmo quando está produzindo para o trabalho?
Marie. Qualquer atividade que se torna um trabalho tem partes que não são tão legais. É difícil pegar algo tão prazeroso e transformar isso em um objetivo de vida, com expectativas
minhas, do público, das empresas apoiadoras, todas as questões financeiras, e ainda casar com o significado disso tudo e com o próprio tempo. Por isso que eu respeito as pausas necessárias para repensar o meu trabalho, as peças... replanejar a minha trajetória. Eu trabalho muito com produção de conteúdo para a internet e tudo gira em torno de números, de métricas, então ao mesmo tempo em que eu preciso fazer algo que vem de dentro de mim, precisa ser algo que dê resultado, e é bem complicado. Nem sempre sai da maneira que eu gostaria que saísse, mas o que eu tento fazer é sempre engajar de forma sincera, com coisas que eu gosto. Tento trabalhar ao máximo nessa conexão com o outro. Não somos tão diferentes assim, então quando exponho minhas vulnerabilidades, consigo criar conexão.
Eu gosto de significar as coisas, o meu cotidiano [...] Acho que no crochê e no tricô isso também foi um processo natural porque uma técnica por si só não me basta, eu preciso contextualizá-la."
URDUME. Falando em métricas, nas eleições de 2018 você se posicionou publicamente em relação a sua posição política. Como você equilibra essa relação delicada entre emitir
opiniões polêmicas e manter a audiência?
Marie. Acho que tem a ver com o meu momento. No começo, eu tinha muito medo de me posicionar, era algo muito novo. Eu não sabia qual era o limite, então aos poucos eu fui levando mais longe. Esse ano eu me senti segura para me posicionar sobre questões mais polêmicas porque isso faz parte da significação do meu trabalho. Tem gente que não entende a linguagem, pra onde eu quero ir, mas hoje eu faço isso com confiança porque é o que acho correto. Eu penso muito em como fazer isso de forma respeitosa, sem agredir ninguém, mas entendo que é necessário que eu me posicione.
URDUME. Como você enxerga o retorno das artes manuais têxteis como uma prática do feminino, agora extrapolando o ambiente de casa e se tornando uma ferramenta de posicionamento político?
Marie. Eu acho um resgate fundamental para o nosso entendimento e reencontro do que é mulher. Existia um preconceito no começo de que as artes manuais eram uma atividade do lar, mas acho importantíssimo que o craft se revista desse sentido de força feminina que a atividade está ganhando. Eu sempre signifiquei meus trabalhos manuais pelo punk como uma questão de liberdade, mas para quem não entrou nesse mundo assim, pode ser diferente. Então, acho ótimo quebrarmos essas barreiras e mostrarmos que essas atividades também têm uma carga política. Se a cada nova geração o discurso handmade ganhar novas camadas, o meu trabalho terá valido a pena.
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