Texto produzido pelo Instituto
Urdume para Revista Bordados Poéticos
,Sesc/Paraty, em homenagem as mulheres,
suas criações e seus fios.
Mulheres foram e são silenciadas em culturas diversas. Não porque não tenham sido representadas, idealizadas ou imaginadas, mas porque suas narrativas não são ouvidas.
No Brasil, esta herança – somada a uma colonização escravista – deu às mulheres, em especial às mulheres negras, um papel tão fundamental quanto invisibilizado. Excluídas do debate público e apartadas da política, sustentaram o país por meio das atividades de cuidado e usaram suas mãos para construir mudanças, dando forma às suas subjetividades.
Segundo a antropóloga Carla Cristina Garcia,campos da criatividade humana, como a culinária ou as artes manuais têxteis, ficaram por muito tempo ocultos atrás das cortinas do espaço privado. Restritas ao ambiente doméstico, de suas próprias casas ou de onde foram escravizadas ou empregadas, muitas mulheres passaram seus dias trabalhando em “atividades criativas classificadas como inferiores por preconceito sexual, racial ou social”. Atividades essas de cunho laboral e, portanto, que demarcaram a produtividade em três aspectos: fazeres sem duração – em ciclo permanente –, sem relevância histórica e tida como um fenômeno natural, intrínseco ao feminino.
Como afirma Ana Maria Machado em seu texto “O Tao da teia – sobre textos e têxteis”, esse cenário até poderia fazer com que os homens não pudessem negar sua dependência da produtividade feminina, mas marcava sua separação das mulheres, cujos afazeres ficavam restritos aos cuidados domésticos. Conforme a escritora, “a circulação da matéria têxtil criada por mulheres era incentivada, mas a circulação do texto e da palavra da mulher encontrava todos os obstáculos”.
No entanto, se por um lado, a produção têxtil privada foi excludente, por muito tempo ela foi também sinônimo de comunidade e narrativa. Desde a Pré-História, mulheres reuniam-se para tecer e, ao mesmo tempo, significar sua própria cultura, traduzida inicialmente por linguagem e vestimenta.Uma referência dessa ligação ancestral entre o fio da vida e do têxtil, que tece tramas suficientes para sustentar as histórias de um povo, está descrita em uma antiga fábula de Gana, no conto africano de Kwaku Ananse, também conhecido como Anansi, que conta a trajetória de
um lugar que vivia sem passado por não ter histórias registradas. Acreditando ser insuportável viver em um mundo sem enredos, Anansi, o homem-aranha, teceu uma extensa teia de prata a fim de chegar ao dono do céu, Nyame, que possuía essas histórias, e o propósito era libertá-las
para o povo, que, assim, poderia construir e contar suas próprias narrativas.
O ar circula entre os fios como o silêncio entre as palavras
Este título, que é uma frase cunhada pela mestra em Teoria Literária e Literatura Comparada, Lara Maria Manesco,mostra como os mitos gregos das fiandeiras podem ser metáforas de um discurso feminino em substituição ao seu silenciamento. Como diz Lara, “a iconografia e a literatura deixam visível o vínculo inseparável do feminino e da tecelagem. A história das mulheres é a história do modo como tomam a palavra”. E Lara ainda vai além: afirma que os mitos e os contos modernos que se utilizam da mesma narrativa que os antigos – como A moça tecelã, de Marina Colasanti - articulam-se “em forma de teia para criar uma cadeia de vínculos mútuos e não hierárquicos”. Ou seja, um diálogo de narrativas formado pelos entrecruzamentos de fios e enredos, circularidade e oscilação entre vazios e preenchimentos.
A teórica destaca também a ideia do tecer como sinônimo de criação. “O fuso, ao transformar matéria vegetal ou animal em tecido, resgata a transformação do pensamento amorfo em palavra, bordada linha a linha no papel.”
Em seu livro “Casaco de Marx”, o professor de literatura Peter Stallybrass reconstrói o valor monetário que o têxtil tinha até o início da Revolução Industrial. “O valor altíssimo dos têxteis, que
durou até o início da manufatura de algodão barato, explica o zelo extraordinário com o qual eles eram listados no testamento do início do período moderno.” As roupas eram conservadas, os corpos que as habitavam é que mudavam.
Do valor monetário atribuído ao têxtil derivaram-se palavras como “fazenda”, com o sentido aproximado de tecido e relativa a um conjunto de bens, e “renda” e “rendimento”, ligadas aos preciosos trabalhos feitos com fios finos pelas mãos das mulheres, como a renda e o bordado. No
entanto, como é sabido, dificilmente esse valor era retornado para quem o produzia.
Ainda assim, mesmo marginalizados,os fazeres têxteis manuais nunca perderam sua potência narrativa e transformadora. Muitas mulheres, sem possibilidade de discurso, contaram suas histórias e garantiram seu sustento pelas linhas. Esse é o caso da artista Harriet Powers, mulher afro-americana da região rural da Geórgia, que foi escravizada e usava a técnica de emenda
de retalhos para registrar lendas locais, cenas cotidianas da escravidão, sonhos de liberdade e histórias bíblicas, criando, assim,simbolismo e iconografia únicos.
Ancestralidade: a costura e a escrita afro-brasileira
No Brasil não foi diferente. O ato de costurar era uma atividade comum às mulheres durante todo o século XIX, aprendizado que fazia parte da educação das meninas desde a infância. Porém, enquanto entre as famílias mais abastadas a prática têxtil era um hobby, nas menos privilegiadas, as mães precisavam dominar esse conhecimento e se desdobrar para conseguir dar conta de um sem-número de remendos, recosturas e transformações em suas próprias casas ou trabalhando como costureiras para outras famílias.
A figura da costureira era frequente nas casas da elite brasileira, ao lado de outros empregados. Responsável por costurar, lavar e cuidar das roupas da família, a costureira, geralmente, era uma pessoa escravizada doméstica. Essa herança perpetuou-se no decorrer do século XX, em que
mulheres negras eram consideradas predestinadas a determinadas profissões, especialmente as que envolviam o trabalho doméstico ou o cuidado com as crianças.
Contudo, pensar em costura, bordados e trabalhos com fios e agulhas, também é falar sobre uma forma de comunicação. Enquanto na imagem da costureira o movimento da agulha e da linha perpassa o tecido, na da escritora são a caneta e a folha que fazem esse papel. “Texto” vem do latim textum, que significa tecido, entrelaçamento. É, então, o resultado de uma combinação per
feita de uma espécie de fios, no caso, as orações, e o resultado - a costura – o texto propriamente dito. A inevitável conexão entre os fazeres manuais da escrita e das agulhas está presente não somente no conceito teórico, mas também na história de muitas famílias, cujas mães e avós costureiras e bordadeiras transmitiram para as descendentes a liberdade de criar textos.
Esse é o enredo de vida de muitas mulheres que hoje escrevem graças a um caminho previamente trilhado por quem veio antes delas. O movimento de pinça com a ponta dos dedos serve ora para segurar a agulha, ora para empunhar a caneta e, assim, entrelaçar palavras para criar nar
rativas textuais. Tais histórias narradas, que são decodificadas por meio da junção de letras, outrora eram contadas oralmente enquanto se fiava ou tecia, como lembra Walter Benjamin: “Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve uma histó
ria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira, que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje em todas as pontas, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual (...). A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação”.
Assim, ouvir as mães cantarem enquanto teciam, conviver em espaços de costura ou brincar com pedaços de tecido – e ter aí um primeiro contato com as narrativas têxteis – serviu como propulsor
para muitas escritoras e escritores negros da atualidade terem a oportunidade de se expressar por meio das palavras impressas.
Sueli Carneiro
A mais velha dos sete filhos de uma costureira, Sueli Carneiro (1950) é referência na construção do pensamento feminista negro no Brasil e na militância de raça e gênero. A compreensão sobre
a desigualdade e sobre as diferenças de oportunidades, ela teve, ainda pequena, quando entrou na escola – espaço que costuma ser o primeiro onde o racismo fica explícito e se apresenta de forma mais estruturada. Uma das versões de Sueli, então, que foi a da criança ferida,se transformou em muitas versões de Sueli como mulher adulta. Uma delas é a mulher politizada, que encara a militância antirracista como um ideal.
Também com esse propósito em mente, Sueli virou escritora, filósofa, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e atua nos movimentos feministas e nos movimento negros no Brasil e pelo mundo afora. Além de ser uma figura importante para a implanta ção do sistema de cotas nas universidades brasileiras, Sueli é fundadora e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, primeira organização negra e feminista independente de São Paulo, que, por meio do Portal Geledés, expressa publicamente as ações feitas pela organização.
Lena Martins
A filósofa e ativista, que é mãe de Luanda, sabe da importância da continuidade dos movimentos para melhorar a realidade de vida de muitas pessoas, por isso também é generosa ao compartilhar o conhecimento com as mulheres mais jovens. Lena Martins (1950), a criadora das
bonecas Abayomi, também teve a mãe como inspiração, que era costureira em uma confecção em São Luiz (MA), onde nasceu. O galpão em que ficavam as máquinas de costura foi o universo onde Lena viveu até os 8 anos, quando usava as sobras de tecido para brincar. Essa vivência acabou influenciando seu caminho como artesã, mais precisamente desenvolvendo as bonecas de tecido negro, feitas sem cola, sem costura e sem estrutura interna – utilizando apenas nós, dobra-
duras e cortes.
Mesmo criadas por Lena na década de 1980, existem muitas versões falsas sobre o surgimento das bonecas Abayomi. A mais famosa afirma que as mães a faziam para os seus filhos nos navios negreiros, utilizando retalhos de roupas. Essa distorção histórica revela a tentativa de não reconhecer a história e a cultura negra como parte integrante da cultura brasileira.
Além de ativista e artesã, Lena também enveredou pelo campo literário, em que deixou fluir a sua vertente escritora. O livro infantil Vida que voa, lançado em 2011, conta sobre as sabedorias compartilhadas entre avó e neta e é ilustrado com as bonecas Abayomi.
Abdias Nascimento
As questões envolvendo a mulher negra e a luta antirracista foram compreendidas desde cedo por Abdias Nascimento (1914-2011), nascido em Franca, interior de São Paulo. A mãe, costureira e cozinheira, também era contratada como ama de leite por famílias abastadas, imagem que impactou fortemente a vida do filho.
E essa vivência, assim como outras, o fez desejar a libertação da população negra. Formado em Economia, Abdias foi um intelectual que mesclou a carreira artística, acadêmica e política – destacou-se como escritor, poeta, dramaturgo,ator, pintor, ensaísta, teórico, professor e político. Mesmo com vasta obra, seu nome ainda não estampa a lista de referências na academia brasileira justamente porque seus pensamentos aborda questões essenciais para a plena cidadania do povo negro e, em muitos ambientes, ainda se trata de um assunto que não
interessa ser tocado.
A capacidade de atuar em diversas frentes é resultado, em parte, de sua formação, que conta com a participação ativa em movimentos sociais, e em parte pelo que carrega dos ensinamentos familiares, que lhe deram força e autoconfiança para não baixar a cabeça diante de uma socie-dade racista. A mãe ensinou a ele e aos seis irmãos a lutar contra as injustiças, e ela mesma era o exemplo. Lutava e resistia diante das dificuldades da vida, lição que deixou como legado para os filhos.
A família, que era muito pobre, sofreu na pele os resquícios da escravidão, extinta, legalmente, em 1888. Porém, como não veio seguida de políticas públicas para a colocação de pessoas negras no mercado de trabalho, deixou muitas sem expectativas. A própria avó de Abdias foi escravizada. A mãe, quando percorria as fazendas em busca de trabalho, encontrava muitas
pessoas que haviam sido escravizadas. E esses fatos o marcaram profundamente. A memória de Abdias, assim como acontece ainda hoje com a população negra, representa um grande esforço para solucionar uma série de dificuldades.
Entrelaçada ao manual e à realidade, a criação literária traz à tona uma forma de expressão criada pelas mulheres e compartilhada com todos aqueles que foram subvalorizados ou oprimidos. Um conhecimento da experiência, que põe em xeque o poder racional, teórico e patriarcal do eurocentrismo ocidental. Por isso, narrar e escrever, jogando luz sobre a composição de fios, gestos e letras que tramam a vida, é resgatar raízes e dar voz aos antepassados que não foram valorizados em seus fazeres.
Reconhecer a linha da narrativa que atravessa o corpo é, como descreve a personagem Belonísia, do livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, desenrolar as ideias na cabeça como um novelo de malha de apanhar peixe. “Quando sento quieta pra costurar uma roupa velha ou levanto a
enxada para devolvê-la de novo no chão, (...), é que esse fio, que tem sido meu pensa-
mento, vai se fazendo trama.”
referências:
Costureiras, mucamas, lavadeiras e vendedoras: O trabalho feminino
no século XIX e o cuidado com as roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920)
https://www.redalyc.org/jatsRepo/
381/38159160008/html/index.html
Sueli Carneiro: filósofa, educadora
e porta-voz de uma geração
https://almapreta.com/editorias/
o-quilombo/sueli-carneiro-filosofa-educadora-
e-porta-voz-de-uma-geracao
O pensamento de Abdias Nascimento
e a luta contra o racismo
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/
direitos-humanos/o-pensamento-de-abdias-
nascimento-e-luta-contra-o-racismo-1
Manesco, L. Para além de Penélope: a tessitura mítica e intertextual
em contos da literatura brasileira, USP, 2017
Stallybrass, P. O Casaco de Marx: Roupas, Memória, Dor. Editora
Autêntica (2004)
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